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Vamos ter cada vez mais ócio
por Você SA
Publicada em 5/3/2007

O sociólogo italiano Domenico De Masi trabalha nove meses por ano. Nos outros três, descansa numa cidadezinha na Costa Amalfitana, no sul da Itália. Um arranjo perfeito? Ainda não, segundo De Masi. O perfeito, na sua opinião, seria fazer o contrário: gastar nove meses lendo, ouvindo música, conversando com amigos - e trabalhar só nos três meses restantes. Fantasia? Nem tanto, sustenta ele, se houvesse mais racionalidade no ambiente profissional e na maneira como produzimos.

 

De Masi é um especialista em sociologia do trabalho. Segundo ele, na era pós-industrial (a do próximo século) vamos ter cada vez mais ócio e menos trabalho. O problema, segundo De Masi, é que não sabemos usar direito nosso tempo livre. 'Nenhum executivo precisaria trabalhar mais do que 5 ou 6 horas por dia', diz. 'Só fica no escritório porque não sabe o que fazer fora dele.'

 

Foi com idéias como essas que De Masi, numa recente passagem pelo Brasil, despertou intenso interesse de todos os que tiveram oportunidade de ouvi-lo - a partir de uma entrevista apresentada no programa Roda Viva, da TV Cultura, na primeira segunda-feira de janeiro. O sucesso foi tanto que a emissora, a pedido dos telespectadores, reprisou-a na semana seguinte. Mais de 1 000 pessoas compraram a fita de vídeo com a íntegra da entrevista. Quem conseguiu comprar seu exemplar da fita, distribuiu cópias para os amigos, parentes e vizinhos. A entrevista coincidiu com o lançamento do primeiro livro de De Masi no Brasil. A primeira edição de A Emoção É a Regra, da editora José Olympio, esgotou nas livrarias. Uma nova edição precisou ser providenciada às pressas. De Masi é professor titular de sociologia do trabalho da Universidade de Roma La Sapienza. O que você vai ler a seguir é um resumo de algumas de suas principais idéias, apresentadas no programa da TV Cultura.

 

 

Nunca vivemos tão bem

 

Tenho muitos amigos intelectuais que às vezes dizem que queriam ter vivido no século 18, ou na época dos gregos, ou na época dos romanos, ou no Renascimento. Creio que esses amigos se iludem. Há 20 ou 30 anos, bastava ter uma dor de dente para que isso fosse uma grande tragédia. Acho impossível não sermos otimistas em uma situação como a atual. Pensemos um pouco nos dados. Em 800 gerações, desde o homem de Neandertal até nossos avós, a média de vida humana girou sempre em torno de 29 a 30 anos, ou cerca de 262 800 horas. Nossos bisavós viviam 32 anos (os homens) e 33 anos (as mulheres). Hoje, em apenas duas gerações, temos uma média de vida de 79 anos, no caso dos homens, e 82 anos, no das mulheres.

 

Desde sempre o ser humano esperou trabalhar o menos possível, ser o mais rico possível, se cansar o menos possível, sofrer o menos possível. Tudo isso ainda não foi atingido, mas estamos no caminho certo. Creio que, graças ao progresso tecnológico e científico e à globalização, vê-se finalmente uma luz no fim do túnel. Houve pouco progresso humano em 80 milhões de anos. Depois, na Mesopotâmia, há 7 000 anos, o progresso foi extraordinário: descobriu-se a escrita, a economia, a moeda, a astronomia... Em Atenas, na era de Péricles, havia 40 000 homens livres, 20 000 estrangeiros naturalizados e 350 000 escravos. Cada homem livre, em Atenas, tinha entre escravos, esposas e donas de casa, oito ou nove pessoas à sua disposição. Hoje, para fazer o que essa gente toda fazia, temos lava-louças, máquinas de lavar, elevadores, telefones...

 

 

Burocracia e criatividade

 

As tecnologias que hoje temos à nossa disposição substituem o trabalho. Isso significa que resta ao ser humano o monopólio do trabalho criativo. Mas criatividade é o oposto de burocracia, porque é a fantasia aliada à realização. Realização sem fantasia gera burocratas. Portanto, burocracia e criatividade são opostos. O mundo atual precisa dos criativos, e já os premia. Os atores, os criadores de moda, os cientistas, os artistas são muito mais cortejados e gratificados que os executivos. Estamos num mundo em que reduz-se progressivamente a tarefa executiva, que é delegada às máquinas, e diminui-se o espaço dos burocratas.

 

Por sua própria vocação, os burocratas são sádicos. Um burocrata é feliz quando pode matar as idéias dos criativos. O burocrata é feliz ao poder dizer a frase: 'Lamento, mas venceu o prazo'. É a frase que maior orgasmo proporciona aos burocratas. O burocrata vê os limites, ao passo que o criativo vê as oportunidades e transforma até vínculos em oportunidades. Enquanto o burocrata tem razão nove vezes em dez, o criativo erra nove vezes, mas, quando acerta uma vez, está abrindo novos caminhos para a humanidade. Na sociedade pós-industrial haverá cada vez menos lugar para os burocratas. A criatividade e a estética determinam nossa felicidade. Os burocratas determinam nossa infelicidade.

 

 

Por que os gênios são gênios

 

A criatividade resulta de fantasia e realização. Acontece que é difícil encontrar alguém muito fantasioso, criativo e efetivo ao mesmo tempo. Quando ocorre, temos um gênio. Michelangelo foi um gênio. Não porque inventou a cúpula de São Pedro. Mas porque, após desenhá-la, aos 72 anos, convenceu o papa a financiar seu projeto, achou os escultores e os carpinteiros, e os dirigiu - eram 3 500 pessoas - por 20 anos, até a sua morte. Não havia apenas fantasia, mas uma grande realização.

 

É difícil, portanto, encontrar gênios. Mas será que é possível criá-los? Na minha opinião, podemos desenvolver a criatividade coletiva, gerada por grupos em que uns têm maior fantasia e outros, maior capacidade de realização. Veja o meu caso: com certeza, sou fantasioso e pouco realizador. Se não fosse assim, eu seria muito rico. Mas o fato de eu ser sobretudo um homem fantasioso não é positivo. Positivo seria ser fantasioso e realizador ao mesmo tempo. Para se tornar criativo, um grupo deve ter diversidade de classes sociais, não pode ser acadêmico nem burocrático. E deve ter o espírito de luta e desafio. Deve ter também um forte senso estético.

 

Quando eu era mais jovem, pensava que todos podiam ser educados para ser gênios. E perdi talvez um pouco de tempo a mais com colaboradores que não tinham essas possibilidades. Eu os estimulei demais, exigindo o que não tinham. Depois entendi que devemos ser mais realistas, e que só podemos ter de cada colaborador aquilo que ele pode dar. Não é justo baixar o nível de estímulos, mas também não é justo exigir demais.

 

 

Bastam 5 ou 6 horas de trabalho

 

O progresso, tecnológico e organizacional, permite a produção de maior número de bens e serviços com menos trabalho humano. De um lado, isso determina que, fora da empresa, o desemprego pode aumentar. De outro, dentro da empresa, determina um fenômeno que chamo de 'horas extras'. Qualquer executivo hoje, após 4 ou 5 horas de trabalho, poderia ir embora para casa. Mas essas pessoas se acostumaram a ficar somente no escritório - e acabam fingindo, para elas mesmas, que têm muito trabalho. Concluí há pouco uma pesquisa com 11 empresas italianas. O resultado foi que os executivos (não falo do alto escalão, mas do médio) poderiam fazer tudo o que fazem em, no máximo, 5 ou 6 horas por dia. Todos poderiam ir embora depois disso. Mas ficam até o fim do expediente e, muitas vezes, até depois - ou seja, fazem 'horas extras'. O que os executivos realizam nesse tempo em que ficam a mais na empresa? Duas coisas: fazem reuniões, geralmente inúteis; e criam normas para os outros.

 

Estou dando consultoria a uma grande empresa italiana do ramo metal-mecânico. Tenho reuniões mensais com o presidente e com seus dez maiores colaboradores, e todo mês passo a eles uma lição de casa. Cada um deve trazer às reuniões duas normas a serem eliminadas. Resultado: são eliminadas 22 normas a cada reunião. Apesar de já termos suprimido mais de 200 regras, ainda existem muitas que arruinam a vida da empresa. As normas e as horas extras, quase sempre se destinam a permitir que os executivos 'façam companhia' aos chefes. As horas extras geram muita tristeza nas empresas. Os executivos felizes são raros. E, muitas vezes, se convencem de que o dever da empresa não é a felicidade dos funcionários. Observei que as que têm mais êxito são as empresas com funcionários mais felizes, pois onde são mais felizes são mais criativos - e, portanto, mais eficientes.

 

 

Preparar o tempo livre

 

O futuro é feito sobretudo de tempo sem trabalho. Nossos avós viviam 300 000 horas e trabalhavam 120 000 horas. Nós vivemos 700 000 horas e trabalhamos no máximo 70 000 horas. Enquanto nossos avós trabalhavam metade da vida, nós trabalhamos um décimo. Entretanto, a escola e a família só nos preparam para o trabalho - não nos preparam para o tempo livre. Ninguém nos diz como escolher um filme. Ninguém nos diz como escolher uma ópera. Ninguém nos diz o que ouvir nem como ouvir música. Ninguém nos ensina a curtir as pessoas. Por isso, o executivo que fica 10 ou 12 horas por dia no escritório leva trabalho para casa quando sai para o fim de semana. Sim, porque não sabe fazer mais nada. Muitas vezes, no verão, na praia, ele liga para o escritório para ter notícias do trabalho. É obcecado pelo trabalho. E depois, aos 55 ou 60 anos, é mandado embora. Mas, por causa dos avanços da medicina, essa pessoa ainda vai viver mais 20 ou 30 anos. Só que não sabe o que fazer.

 

Na minha opinião, a velhice não se calcula em relação ao nascimento, mas em relação à morte. Ou seja, somos velhos, mesmo, só nos últimos dois anos de vida. Quando o homem vivia 50 anos, ficava velho aos 48. Mas hoje, que vive 80 anos, fica velho aos 78 anos. Ou seja, ao se aposentar aos 60 anos, a pessoa ainda vai viver 20 anos sem saber o que fazer. Viverá uma vida fisicamente forte, mas psiquicamente perdida. Acho que no futuro será impossível distinguir estudo e trabalho de tempo livre, por causa das próprias atividades desse futuro.

 

 

O luxo do tempo

 

Nossos escritórios são gaiolas de vidro, terríveis, onde não nos sentimos bem. Somos obrigados a conviver com colegas antipáticos, com chefes muitas vezes mal-educados, comendo coisas péssimas... Mas ficamos o tempo todo lá. As empresas, aliás, fazem de tudo para trazer para dentro do ambiente de trabalho o bar, o restaurante, a creche, com o objetivo de evitar a saída dos funcionários. O tempo livre deve ser, sobretudo, o momento do luxo. O que é luxo hoje? No passado, luxo podia ser o dinheiro, os carros de muitas cilindradas ou os barcos. Hoje, as coisas raras são, sobretudo, o tempo, o espaço, o silêncio, a autonomia, a segurança. Estes são os grandes luxos para o século 21.

 

 

Somos escravos do salário

 

Sempre existiu escravidão. Antes os escravos eram presos a correntes. Hoje podemos ser escravos da droga, do amor, do prazer. Levamos muitos séculos para nos libertarmos da escravidão. Depois, a tecnologia industrial ajudou a nos libertar do cansaço físico e de toda uma série de trabalhos terríveis, perigosos, nocivos à saúde. É hora, agora, de nos libertarmos do cansaço intelectual, do trabalho 'residual'. Isto implica o quê? Para começar, implica que não sabemos organizar o trabalho. Por que temos pais que trabalham 10, 12 horas por dia enquanto os filhos estão desempregados? A resposta é que não teríamos que fazer isso. Ninguém impede que pai e filho trabalhem 5 horas cada um. Ninguém nos impede de reorganizar a sociedade, de modo que o trabalho não seja o único salvo-conduto para ganhar um salário. Por que um estudante, um garoto de 20 anos, ganha um salário para trabalhar num banco e não pode ganhar o mesmo salário para continuar apenas estudando na universidade? Em muitos edifícios há elevadores e um garoto ou uma garota trabalhando como ascensoristas. São totalmente inúteis. Estão fechados numa caixa, mas, se não sobem e descem apertando o botão para nós, não recebem o salário. É uma loucura! Pode-se dar a esses jovens o salário e dizer: 'Vá para a escola!' ou 'Vá se divertir'. Criamos uma sociedade na qual quem não trabalha ou não finge trabalhar não tem o direito de viver. É uma loucura total.

 

 

Mozart poderia ter sido açougueiro

 

Todos somos mais criativos em alguma coisa e menos em outra. Acho que Mozart ou Beethoven seriam péssimos matemáticos. Consta de suas biografias que eram péssimos no dia-a-dia. Beethoven, por exemplo, brigava com todos os senhorios. Só em Viena, mudou-se 30 vezes. Era incapaz de organizar sua vida cotidiana. Morreu num quarto desleixado, sujo, terrível. No entanto, na música, era gênio absoluto. A primeira coisa é entender em que somos criativos. Cada um é mais criativo em uma coisa do que em outra. Se Mozart não fosse filho de Leopoldo, que tinha uma grande paixão por música, e fosse filho de açougueiro ou de médico, seria açougueiro ou médico, e teríamos perdido um grande músico. A criatividade não é um ponto de partida - é um ponto de chegada. Criativo é quem é capaz de aliar o melhor daquilo que herdou da natureza ao aprendizado. Contam que uma senhora muito rica teria pedido a Picasso um retrato. Picasso o fez em segundos e cobrou muito caro. A mulher disse: 'Mas isto só levou alguns segundos. Não deveria custar tanto'. Ele respondeu: 'Não foram alguns segundos. Eu levei a vida toda para pintá-lo'.

 

 

As mulheres agora detêm o petróleo

 

A sociedade industrial nasceu do Iluminismo. Antes do Iluminismo, os fatos da natureza (raio, trovão ou uma epidemia) eram atribuídos ao desejo dos deuses ou do diabo, e assim por diante. O Iluminismo introduziu a racionalização. Os seres humanos têm condições de entender racionalmente os acontecimentos físicos e humanos e dominá-los. Um dos maiores iluministas foi Benjamin Franklin, o inventor do pára-raios. E o raio era o mais típico dos feitos caprichosos dos deuses, de Júpiter ou dos outros. Mas a indústria nascida do Iluminismo exacerbou o conceito de racionalização. Partiu do princípio de que tudo que é bom é racional.

 

Mais: o Iluminismo acrescentou que tudo que é racional é masculino e se refere à produção, e produção se faz na empresa. Tudo que é ruim, ao contrário, é emocional, e emocional é feminino, e feminino se refere à reprodução, e reprodução é feita em casa. Houve, portanto, uma cisão terrível entre os homens, que se atribuíram o poder e o monopólio do trabalho, e as mulheres, que foram deixadas em casa. Mas hoje nos damos conta de que as empresas não progridem sem idéias, e que isso requer fantasia, subjetividade, estética e emotividade. É como se, de repente, o petróleo fosse importante, e descobríssemos que você tem petróleo e eu não. O petróleo da era pós-industrial será criatividade, estética, emotividade, subjetividade.

 

Quem tem isso são as mulheres. Não é dádiva da natureza. É que nós (homens) nos descuidamos, e as mulheres as cultivaram. Era só o que podiam cultivar. De fato, hoje, nos campos de maior criatividade - no cinema, no teatro, na literatura, na imprensa, na televisão -, o número de mulheres cresce sempre mais. Caminhamos para uma sociedade em que a mulher é considerada à altura do homem. Isso não aconteceu por bondade do homem. As mulheres souberam lutar para impor essa realidade. Elas têm uma vantagem sobre nós. Podem ter filhos sem marido, e nós não podemos ter filhos sem mulher. Isso cria um desnível a favor delas.

 

 

Globalizar é um instinto humano

 

Hoje se fala muito em globalização, mas, se perguntarmos a um executivo o que é mesmo globalização, ele não sabe. Globalização é quase um instinto humano. Os homens sempre procuraram globalizar seus conhecimentos. Primeiro, por meio da descoberta, da exploração e da cartografia de todo o planeta. Depois, com as grandes viagens. Com armas e mercadorias, tentou-se conquistar as regiões recém-descobertas do mundo. Depois, as conquistas se deram por meio dos capitais e das idéias. A Igreja a fez com os missionários. A CNN a faz através de sua rede de televisão. E o Brasil, por suas novelas. Hoje, temos tudo isso junto. Há todas as formas de globalização anteriores e temos que acrescentar que, pela primeira vez, há um 'país' hegemônico, que tem seu exército em todo o planeta.

 

Pela primeira vez saímos de duas guerras mundiais. Pela primeira vez saímos de uma guerra fria. Pela primeira vez temos os meios de comunicação de massa. Com isso tudo, a globalização política passou a ser econômica e agora está se tornando psicológica. Temos dados desconcertantes: 32 milhões de pessoas por hora consomem Coca-Cola; 18 milhões de pessoas comem por hora um hambúrguer do McDonald's. Somos globalizados em tudo. Não só a economia foi globalizada. Nossa personalidade e nossos sentidos também. Vemos em qualquer lugar os mesmos filmes. Ouvimos em qualquer lugar a mesma música. Todos os aeroportos do mundo têm o mesmo cheiro. Vivemos em uma globalização psicológica, que, de um lado, transforma o mundo numa grande vizinhança e mescla as experiências, mas, de outro, aniquila as diferenças. E aniquilar as diferenças é terrível.

 


Artigo fornecido pela revista VOCÊ S/A.
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